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‘É uma imoralidade ricos terem acesso às vacinas antes dos pobres’, diz médico da USP

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O anúncio de que o setor privado negocia a compra de uma vacina indiana contra a Covid-19 tem dividido os especialistas em saúde entre os que veem a medida como benéfica ao SUS e os que a consideram uma “imoralidade” dentro do contexto de uma pandemia que já matou quase 200 mil pessoas e diante da escassez de doses. As informações são da Folha de S. Paulo.

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, 67, professor de saúde pública da USP, afirma que, numa sociedade tão desigual quanto à brasileira, é uma “imoralidade” as pessoas com dinheiro possam ter acesso à vacina contra a Covid-19 nas clínicas privadas, antes dos usuários do SUS.

Para ele, uma parceria ética seria que o setor privado atuasse dentro das mesmas regras organizadas por uma política pública, priorizando os mesmos grupos mais vulneráveis.

“Mas não é essa a proposta que está aí. A proposta é pegar gente que, do meu ponto de vista, estaria na posição número 30 [no grupo de prioridades para a vacina] e colocar na posição número 1. Isso não é parceria. Isso é inominável”.

Qual o risco de as clínicas privadas oferecerem a vacina contra a Covid-19 para um público que pode pagar por elas? O maior risco é o moral mesmo. É uma imoralidade as pessoas que têm dinheiro terem acesso à vacina antes das pessoas que não têm dinheiro numa sociedade tão desigual como a nossa. As pessoas podem dizer: “ah, mas isso é galinha morta; no Brasil, é assim mesmo”.

Só que é uma galinha morta no meio de uma pandemia onde os nervos estão muito mais expostos, onde a gente tem que tomar muito mais cuidado para que essa pandemia não produza mais desigualdade ainda.

Nós sabemos que temos filas que andam diferente para tudo na saúde, exceto o transplante, para o qual há uma única fila rigorosamente seguida para ricos e pobres. Agora, a fila do tratamento do câncer, a fila da cirurgia cardíaca, a fila da cirurgia ortopédica, nenhuma é igual para quem tem dinheiro e para quem não tem dinheiro. Quem tem dinheiro é tratado antes, e nós ignoramos isso.

O que seria diferente então neste momento? Ter uma fila independente, que anda com velocidade diferente, no meio de uma pandemia, é imoralidade.

Do ponto de vista comercial, numa economia liberal, tudo bem. Mas, no meio de uma pandemia, é eticamente insustentável. A sociedade vai ter capacidade de fazer a sua crítica a essa fila não ética. A gente tem que buscar formas de diminuir o nível de desigualdade na nossa sociedade.

A própria pandemia já mostrou desigualdades de acesso ao tratamento… desigualdade no acesso ao tratamento e desigualdade na mortalidade. Nós sabemos que quem morre mais é preto, analfabeto e pobre. Esse é o perfil da mortalidade. Mas isso não afeta uma sociedade que está anestesiada para invisibilidade dessas diferenças.

Porém, é diferente quando você diz: aqui é a fila da vacina para quem tem R$ 2.000 e aqui é a fila da vacina que não sabemos como é nem quando começa. Isso é grave.

Por que a sociedade não está mobilizada contra essas desigualdades na pandemia? Por um lado, há um certo anestesiamento da sociedade. Por outro, tem um clima de salve-se quem puder. Não me interessa quem se salvará desde que eu esteja na primeira fila. É uma sociedade pouco civilizada.

Eu não consigo enxergar uma coisa dessas acontecendo na Europa. No entanto, aqui no Brasil, isso é quase uma normalidade. Tenho certeza de que algumas pessoas vão dizer que estou falando bobagem: ‘Como o Gonzalo, uma pessoa de bom senso está contra isso, que parece tão positivo’. Ou seja, dar a vacina para quem eu conseguir dar e não para quem deve receber. Mas essa é a regra de uma sociedade não civilizada, que a gente tem que evitar. É a regra da imoralidade, é não ética.

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